No segmento evangélico do cristianismo, poucos são os que lêem a Bíblia com real proveito. A maior parte não a lê - ou lê muito mal. Prende-se apenas aos versículos das caixinhas de promessas, a breves textos selecionados por manuais de devoção e a panorâmicos comentários de publicações para as escolas dominicais.
É uma risível ironia: os chamados bíblias (crentes que se deslocam pelas ruas carregando o livro de capa preta debaixo do braço) pouco conhecem a Bíblia. Entre eles figuram, sem qualquer dúvida, vários pregadores. Nas praças e nos vagões de trem, nos púlpitos ornamentados e nos palanques improvisados, nas rádios e nos programas de televisão podemos ouvi-los, com a autoridade de quem se julga sócio de Deus, proferir frases de efeito e divulgar opiniões dogmáticas que não resistem à exegese mais superficial. Como afirmava o padre Antônio Vieira nos tempos do Brasil colonizado, pregam palavras de Deus, mas não a Palavra de Deus.
Um texto bíblico, para que haja boa compreensão e correta aplicação, deve ser lido nos limites do contexto imediato que o cerca, examinado à luz do seu propósito original, interpretado a partir do ambiente histórico-cultural em que foi produzido e avaliado sem que se ofusque o todo coerente da mensagem das Escrituras.
Além disso, convém considerar e respeitar a diversidade dos gêneros literários que compõem o conjunto dos livros bíblicos. Assim como não é possível dar a romances o mesmo tratamento dispensado a tratados científicos, também interpretamos com critérios bastante distintos a poesia dos salmos e as profecias do Antigo Testamento, os artigos da legislação mosaica e as narrativas das parábolas nos Evangelhos, o discurso de Cristo no Sermão do Monte e as dramáticas descrições apocalípticas.
O desconhecimento de normas hermenêuticas básicas fez com que certo pregador do interior nordestino, para justificar seu costume de freqüentar os meretrícios da cidade, usasse as palavras figuradas do prólogo de Oséias ("vai, toma uma mulher de prostituições") como ordem divina literal dada a ele mesmo.
Absurdos como este não são raros. Numa igreja do subúrbio carioca o pastor proíbe as mulheres menstruadas de participarem da celebração da ceia, tomando por base os ritos de purificação registrados em Levítico. Não posso sequer imaginar o mecanismo utilizado pela liderança da igreja para separar as puras das impuras antes do início do culto...
Martinho Lutero, durante os acirrados debates em defesa da autoridade soberana das Escrituras contra o tradicionalismo católico-romano, apregoava o livre exame do livro sagrado e apoiava a tradução dos textos bíblicos para a língua do povo. Quando indagavam ao reformador alemão se não considerava perigoso deixar o leitor à vontade para fazer sua própria interpretação da Bíblia, Lutero afirmava ser menos prejudicial à Palavra de Deus confrontar várias interpretações diferentes, com liberdade para optar por aquela que melhor obedecesse as normas da boa hermenêutica, do que submeter-se obrigatoriamente a uma só interpretação oficial sem direito a qualquer discordância.
Hoje são poucos os evangélicos dispostos a buscar compreender o texto bíblico por meio de um método hermenêutico lúcido. Aliás, os pretensos intérpretes preferem deixar o texto bíblico de lado e falar apenas o que lhes vem à cabeça.
E o que lhes vem à cabeça - basta ouvi-los para constatar - é bem ruim. E cheira mal.
Pr Carlos Novaes
Igreja Batista Barão da Taquara - RJ
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